In mycelio (ut in vino), veritas

Artigo da 4ª edição do Dialoga debate competências humanas atemporais, vitais para a conexão dos membros de um conselho

  • 16/01/2023
  • Cris Bianchi - 4ª edição IBGC Dialoga
  • Artigo

O leitor deve estar se perguntando: que título é esse? Originalmente cunhada pelo poeta grego Alceu de Mitilene, a expressão In vino veritas (No vinho, a verdade) deve sua disseminação no mundo antigo às obras escritas do historiador Tácito e do naturalista Plinio o Velho, ambos romanos.

A sobrevivência da citação até hoje, porém, é fruto do caráter atemporal de sua mensagem. Tácito a ilustra muito bem em sua obra Germânia. Ali ele descreve que, durante suas reuniões de deliberação (concílios), os germânicos se embriagavam por convicção de que, alcoolizados, se expressariam mais espontânea e sinceramente.

Já o micélio, é uma rede de fungos que conecta ao menos 90% das plantas do planeta, sejam terrestres ou aquáticas. Em 1997 confirmou-se que, através dele, o reino vegetal se comunica e trabalha de forma colaborativa, atendendo as necessidades de seus inúmeros ecossistemas das mais variadas formas.

Em resumo, o título diz: No micélio, assim como no vinho, a verdade.

Calar é de ouro?
Vem de muito tempo o conceito do ser humano de que expor publicamente as próprias ideias pode ser algo difícil e até perigoso. Historicamente, quanto mais criativo e valioso era o pensamento de um indivíduo, mais combatidos eram os pilares de sua concepção. Isso ocorria porque entendimentos humanos inovadores invariavelmente, ou desafiavam paradigmas vigentes, ou contrariavam interesses, ou afrontavam as religiões. Ou, com frequência, tudo isso junto.

Como resultado, salvo honrosas exceções, as consequências sobre quem ousava inovar não eram das mais encorajadoras. Partiam do descrédito e humilhação pública e facilmente terminavam na morte infame. Como resultado, ainda hoje predomina entre nós a cultura de autoproteção sob a qual, na dúvida sobre a reação a um pensamento dissonante, é melhor guardá-lo para si.

Sobre os ombros de gigantes mudos?
Em fevereiro de 1676, ao justificar a Robert Hooke sua contestação a determinado experimento do colega, Sir Isaac Newton pontuou: “Se vi mais longe, foi porque estava em pé sobre ombros de gigantes”. Com essa declaração, o genial cientista esclareceu que, se tinha maior conhecimento sobre física que Hook, era graças aos grandes cérebros que o precederam.

A frase de Newton traz a reflexão de que em todas as artes, filosofia e ciências, a árvore de pés e ombros unindo os grandes expoentes atuais ao incógnito inventor da roda, passa por muitos nomes conhecidos.

Grande parte deles, entretanto, foi desacreditada, chantageada, perseguida, banida, excomungada, torturada e executada. Para sorte da humanidade, nenhum deles foi silenciado. Pois não haveria tal árvore caso os grandes nomes do passado tivessem permanecido mudos.

Ainda assim resta a certeza de que, mesmo sem ter a exata dimensão, a humanidade teve perdas provavelmente profundas de conhecimento, ciência e evolução no silêncio dos anônimos impedidos de se manifestar. A extinção da Biblioteca de Alexandria ilustra essa perda de maneira dramática.

Solum in vino, veritas?
Já que manifestar-se livremente é preciso, será que a embriaguez seria a premissa básica para que um ser humano conseguisse se expressar despreocupada e verdadeiramente?

Aos empolgados com a ideia, vale destacar que não há nova concepção, descoberta ou invenção que seja útil se ninguém conseguir se lembrar de nada na ressaca do dia seguinte. E por mais que tivesse abundante vinho toscano ao seu alcance, ainda assim Galileo Galilei precisou calar. Aliás, sua própria história revela que na verdade, a condição básica para que alguém manifeste seu livre pensar é a segurança. E não basta estar seguro de si. É preciso estar seguro a respeito de seu contexto. Ou no mínimo, de sua audiência.

In mycelio, veritas
Estamos em uma sala de conselho e temos vários tipos de personalidade ali dentro. Por exemplo: o egocentrado, o crítico, o inseguro, o jovem, o mais velho etc.

Basicamente o egocentrado não deixa ninguém falar sem sua permissão; o inseguro não se manifesta por medo da crítica; o crítico ouve, mas não escuta e só critica; o jovem resiste à experiência do mais velho; o mais velho resiste à ousadia do mais jovem.

O resultado é que a criatividade, aquela que depende da abertura ao novo, desaparece atrás do conformismo, a intuição, que depende de experimento e validação, submerge sob o medo, a curiosidade, que depende da ausência de prejulgamento, se esconde na indiferença e a diversidade de pensamento, que depende da liberdade, se encolhe sob a frustração.

Dessa forma, o conselho permanece como sempre foi...há décadas.

É provavelmente fácil identificar essas personalidades acima no sujeito ao lado. O difícil é lembrar que nós somos o sujeito ao lado dos nossos pares.

Dá até um certo alívio, pensar que boa parte do trabalho cartesiano e repetitivo do Conselho em breve estará nas mãos de uma Inteligência Artificial, imune às resistências humanas. Dá também um certo desespero pensar que sempre estará em nossas mãos, a parte que nenhuma IA substitui: nossas competências humanas. Aquelas que, não por coincidência, são essencialmente a intuição, a criatividade, a curiosidade e o acolhimento de pontos de vista diferentes – ou mesmo contrários.

Dessa forma, seria bem interessante se conseguíssemos nos conscientizar sobre nossas limitações e passássemos a treinar nosso desprendimento do protagonismo egocentrado, nossa permissão para errar, nossa análise crítica construtiva e nossa aceitação do diferente. Melhor ainda se nos conectássemos verdadeiramente com nossos colegas e instalássemos, nos colegiados de decisão, um ambiente confiável e promotor de debates enriquecedores. Ou seja, construíssemos um micélio humano onde todos se manifestassem livremente e colaborassem entre si, em prol daquele ecossistema. Ou, por que não, de toda a biosfera.

Mas isso talvez seja matéria para um próximo artigo.

Este artigo foi produzido a partir da 4ª edição do IBGC Dialoga que ocorreu no período de agosto a novembro de 2022. A iniciativa se baseia na formação de grupos, a fim de criar espaços de debate entre pares, trazendo temas da governança corporativa em setores específicos. Na temporada, os grupos foram organizados nos setores: Agro, Empresas de Controle Familiar; Energia; Mudanças climáticas; Startups; Terceiro Setor e Varejo. Cris Bianchi que assina este artigo, foi instrutora especialista do Dialoga – Empresas de Controle Familiar, na edição.

Para saber sobre a próxima edição do IBGC Dialoga, clique aqui.

Sobre a autora: Cris Bianchi é titular da Cris Bianchi Governança & Conflitos, especializada em empresas familiares.

Este artigo é de responsabilidade dos autores e não reflete, necessariamente, a opinião do IBGC.

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