Depois de duas edições do ciclo de debates do IBGC Dialoga Energia parece oportuno fazer um exercício comparativo: o que mudou e o que não mudou nos seis meses que transcorreram entre as duas edições desta iniciativa?
No plano político-institucional nacional é evidente que as eleições gerais em 2022 foram um evento relevante, sobretudo porque em relação ao Poder Executivo federal resultou uma mudança significativa na “gestalt”, ou seja, uma mudança profunda na forma como pessoas físicas e instituições percebem os problemas e os desafios individualmente ou coletivamente e, consequentemente, reagem e propõem soluções, seja na forma de premissas e diagnósticos ou de propostas concretas.
Temas como a mudança no modelo regulatório do setor elétrico, visando a expansão do mercado livre de comercialização de energia elétrica a clientes finais, de impacto no modelo de negócio das empresas energéticas e também na estratégia de suprimento dos clientes finais, perderam tração e foram obliterados na agenda do governo eleito por questionamentos sobre os graus de liberdade governamental em intervir nos preços e tarifas (de combustíveis líquidos e energia elétrica) e na governança tanto de empresas em que o governo central ainda detém participação significativa no capital, caso da Petrobras e da Eletrobras, como na autonomia das agências reguladoras. E não somente de serviços públicos como também no caso mais complexo do Banco Central.
Portanto, o que não mudou?
Não mudou o grande desafio para os conselhos de administração de empresas e grupos econômicos ligados à cadeia de produção e distribuição de “energia” em sentido amplo, de administrar a frágil conciliação de interesses entre segmentos de shareholders, com foco na preservação e/ou captura de resultados de curto prazo, e as mudanças defendidas por stakeholders no sentido de acelerar transformações expressas na agenda ESG, sobretudo pelo papel central da transição energética na mitigação dos impactos ambientais.
E o que mudou?
A insegurança jurídica, na medida em que o papel intervencionista do governo ao trazer para o mesmo plano os interesses de Estado, tipicamente de longo prazo, com os de governo, tipicamente de curto prazo, agravou a polarização político-institucional, sobretudo porque a agenda de curto prazo não viabiliza a construção de um consenso na forma de políticas públicas necessárias à implementação da transição energética. Algo fundamental para a mitigação dos impactos ambientais, um objetivo que requer uma ação de Estado de longo prazo, atravessando vários mandatos de governo.
O principal agravante desse descompasso conjuntural – e que torna ainda mais complexo o fato que já não era devidamente considerado no diagnóstico e concepção das políticas públicas no governo anterior – é que estamos em meio a mudanças no modo de produção capitalista que requerem mais do que políticas públicas setoriais: requerem enfoque estratégico transversal, multissetoriais, portanto um projeto de Estado de longo prazo.
Mudanças de modo produção são definidas por transformações nas relações técnicas de produção, ou seja, avanços científicos e tecnológicos, e nas relações sociais de produção, sobretudo como são organizados e capacitados os recursos humanos, inclusive demandando recapacitação em face à obsolescência de capacidades e habilidades frente aos novos requisitos técnicos para inserção do fator humano nas cadeias de produção.
Indiscutivelmente, essa aceleração conduz a um dilema: nossa perspectiva histórica é limitada, pois as transformações estão se dando em uma escala temporal sem paralelo na história, que não está sendo considerada na agenda de curto prazo das políticas públicas, nem do governo anterior, nem do atual.
Por isso a relevância da pergunta: estamos nos primórdios de um modo de produção capitalista “digital” ou no preâmbulo do que a história virá a registrar uma transição para um “capitalismo consciente e/ou de stakeholders”?
A resposta a essa pergunta não é trivial, mas é absolutamente relevante para a sistematização da agenda temática e estratégica de longo prazo dos conselhos de administração, tanto de empresas e organizações sob controle privado, como das congêneres sobre controle estatal, total ou parcial. E não só do setor “energético”.
Antonio Gramsci, em notas escritas no cárcere (1930), definiu, referindo-se a processos de transformação revolucionários, que “a crise consiste justamente no fato de que o velho [regime político, ou modo de produção] morre e o novo [ainda] não pode nascer; neste interregno, os mais variados fenômenos mórbidos ocorrem”.
Provocação: tudo deve mudar para permanecer como está?
Os dilemas dos conselhos de administração não mudaram, mas agravou-se a “gestalt” sobre os componentes de risco e seu gerenciamento, sobretudo porque no curto prazo agravou-se a percepção de insegurança jurídica em face a rupturas contratuais, como por exemplo a revisão do Marco Regulatório do Setor de Saneamento (que tem características análogas às concessões, autorizações e permissões do setor elétrico e de gás & petróleo) e a revisão (ou reversão) das obrigações e limitações de uso do poder político de acionistas para intervenções extemporâneas na governança de sociedades de capital misto listadas nacionalmente e internacionalmente.
Em síntese, permanecem válidas as três recomendações que foram destacadas nas duas edições do IBGC | Dialoga Energia:
1. Os Conselhos de Administração devem dedicar máxima atenção e foco sobre os riscos operacionais, mesmo os de baixa probabilidade, que sejam passíveis de alcançar exposição pública e repercussão reputacional, estabelecendo diretrizes estratégicas à Gestão não somente na identificação de passivos ocultos como o detalhamento das ações de remediação, como parte do monitoramento e prestação de contas (accountability), inclusive revendo e aperfeiçoando métodos preditivos de riscos operacionais, financeiros e de imagem;
2. Rever e aperfeiçoar os processos de proposição e análise dos impactos ambientais, sociais e de governança, bem como dos impactos financeiros de curto, médio e prazo, que darão suporte ao processo de deliberação de matérias em pauta tanto na alçada do Conselho de Administração quanto na alçada da Diretoria Executiva, dando maior evidência e comprovação do exercício do dever de diligência e de lealdade pelos Administradores (“se não está nos Autos, não está no mundo”);
3. Rever e aperfeiçoar as políticas de comunicação e transparência com shareholders e stakeholders, cuja responsabilidade de supervisão compete ao Presidente do Conselho (no caso dos shareholders) e de execução ao Presidente Executivo (no caso dos stakeholders), buscando o máximo entrosamento entre o Conselho e a Direção Executiva.
Este artigo foi produzido a partir da 5ª edição do IBGC Dialoga que ocorreu no período de março a junho de 2023. A iniciativa se baseia na formação de grupos, a fim de criar espaços de debate entre pares , trazendo temas da governança corporativa em setores específicos. Na temporada, os grupos foram organizados nos setores: Governança Climática, Governança das Famílias Empresárias no Agronegócio, Setor Energia, Setor Financeiro, Inovação e Tecnologia, Sociedade 5.0 e o futuro do trabalho e Startups.
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Sobre o autor: Eduardo José Bernini é mestre em Políticas Públicas pela Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo (2015),; tem MBA em Governança Corporativa pela FIPECAFI (2013) e é economista pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (1980). Também é conselheiro de administração certificado por experiência pelo IBGC (2009).