“Um ambiente de negócios com alto índice inflacionários é inversamente proporcional ao desenvolvimento, crescimento e atratividade das empresas”, diz Fabio Coelho, presidente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec), ao comentar sobre o impacto da inflação no mercado de capitais brasileiro e global. Nos últimos tempos, a aceleração de preços tem batido recordes ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, atingiu seu mais alto nível desde 1981 e tem se tornado uma ameaça para o crescimento econômico-social além de suas fronteiras.
Para Fabio, que já atuou no Banco Central e no Ministério da Economia, há outros fatores, especialmente no Brasil, que vêm impactando a atratividade de investidores e afastando empresas de boas oportunidades de negócios. Ao Blog IBGC, o especialista compartilhou sua avaliação sobre o panorama atual, falou sobre o ambiente regulatório do mercado de capitais e sobre a governança corporativa como direcionadora neste cenário. Confira o papo, a seguir:
Blog IBGC: Qual é a sua avaliação quanto ao cenário econômico em 2022, no Brasil, e o que ela nos diz sobre a confiança dos investidores no país?
Fabio Coelho: É preciso começar dizendo que desde o ano passado sabíamos que 2022 seria um ano difícil. E nem estou me referindo ao período pré-eleitoral e à crise energética em virtude do conflito entre Rússia e Ucrânia. Essa dinâmica de como o mundo está saindo de um ambiente de pandemia tem uma série de consequências. Mas a principal variável é a dinâmica inflacionária. O desenvolvimento do mercado de capitais e da economia brasileira é inversamente proporcional à dinâmica da inflação. É como uma mistura de água e óleo. A inflação elevada faz com que a demanda por renda variável perca atratividade, pois projetos ficam mais caros e os valuations das companhias deixem de ficar atrativos para os investidores.
E quais são alguns dos sinais, nesta conjuntura, que têm preocupado mais os investidores brasileiros?
O encerramento das janelas de IPOs pode ser um deles. A gente navegou no ano de 2020 e, em boa parte de 2021, com mercado global e o brasileiro muito aquecido. Tivemos, inclusive, um recorde de empresas abrindo capital no Brasil. Quando observamos sob uma perspectiva histórica, o Brasil só viveu um momento parecido, lá no final da década de 2000. Ou seja, há mais de 10 anos o mercado brasileiro não vivenciava tudo isso. Além do mais, não há essa tendência de empresas abrindo seu capital de maneira muito consistente por aqui. Outro sinal é a taxa de juros. Com essa possibilidade dos Estados Unidos tentar controlar uma ameaça inflacionária, um eventual aumento mais intensivo de juros, maior do que o esperado para os mercados desenvolvidos, faz com que os emergentes percam atratividade no curto prazo.
Podemos dizer que esse é um dos efeitos da pandemia?
Sim, trata-se de um movimento que tem a ver com a própria pandemia. Lá em março de 2020, a reação das economias do mundo inteiro foi de reduzir juros. O mercado de capitais se desenvolveu muito por conta dessa queda dos juros globais. E, viu-se os primeiros sinais do excesso de liquidez no mundo. Mas à medida que a inflação começou a voltar, o mercado de capitais foi esfriando. Essa janela de IPOs foi muito relacionada ao momento de liquidez global. Mas o mercado de capitais não gosta de inflação.
Em 2021, o Brasil foi o 6º país que mais atraiu investimento estrangeiro direto, segundo relatório Mundial de Investimentos lançado pela Agência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento. Como você caracteriza a influência do ambiente regulatório brasileiro neste sentido e o apoio ao investidor estrangeiro?
Temos um longo período de desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro e há alguns marcos que são verdadeiros avanços institucionais. Por exemplo, a Lei das Sociedades Anônimas e a criação do Novo Mercado nos anos 2000. Ambos trazem avanços importantes que até hoje são lembrados no Brasil. Olhando para uma rota de melhor governança, também tivemos aprimoramentos na Leis das Estatais e atuação tanto da CVM quanto da B3 para criar um ambiente regulatório muito melhor. Mas ainda há pontos que precisam de atenção por conta da dinâmica de acontecimentos recentes no mundo. A AMEC tem um grupo de associados que está no exterior e que já relatou dificuldade para navegar no ambiente regulatório no Brasil e exercer o voto nas assembleias. Temos, inclusive, movimentos globais do ponto de vista de governança que estão trazendo deveres de casa para todos os países e isso inclui o Brasil.
Que movimentos são esses?
Um deles é o movimento de competição das bolsas, a fim de aumentar o número de listagens. As empresas em um ambiente de internacionalização, sobretudo as de tecnologia, olham outros países. E as bolsas ao redor do mundo estão buscando mecanismos de retenção. Mas isso reflete em um dilema muito grande para um ambiente regulatório. Até que ponto estamos dispostos a flexibilizar regras para que as empresas tenham interesse de continuar aqui no Brasil? E será que um ambiente de regulação mais flexível não enfraquece regras de governança corporativa? Esse é um dilema. Um segundo movimento toca o investidor estrangeiro. Quando ele vai comprar uma empresa ou tentar participação, ele não tem, como regra geral, o mesmo tratamento que o investidor local tem, pois, há ainda um movimento antigo, de um ambiente de economia de mercado de capitais muito fechado. Estamos começando a ter um ambiente mais saudável em que esse investidor estrangeiro vote em assembleia.
Mas esse espaço ao investidor estrangeiro ainda é um desafio?
É que neste contexto, tem uma discussão que está relacionada ao voto múltiplo. O estrangeiro tem dificuldade para votar em assembleia, os prazos são muito corridos, há toda uma cadeia de voto. O voto múltiplo é um dos mecanismos disponíveis aos investidores para exercer seus direitos nas assembleias, principalmente para as escolhas do conselho de administração. Mas ele precisa ser solicitado para exercer esse método de votação diferenciado. No Brasil, ele tem sido utilizado em eleições muito disputadas, mas nem de longe tem sido usado com tanta frequência. Em 2021, o voto múltiplo foi usado em 6 companhias, em 2022, em cerca de 10 companhias. É um número muito baixo quando a gente olha o mercado de capitais como um todo, com mais de 400 empresas listadas. É um mecanismo importante. Defendo o voto múltiplo, mas é necessário aperfeiçoamento e sei que a CVM já está estudando isso, pois é um mecanismo criado para proteger e ampliar a participação dos minoritários. O Brasil é um dos países do mundo de maior nível de estrutura de controle societário concentrada. A própria Lei das SA criou mecanismos para equilibrar forças, e o voto múltiplo é um dos instrumentos para isso.
Você apontou que entre os avanços institucionais do ambiente regulatório está a Lei das Estatais que, este ano, por mais de uma vez, foi assunto de parlamentares que defendiam mudanças em seu texto. Como você analisa essas investidas?
A Lei das Estatais não é perfeita, precisa de aperfeiçoamento. Mas é reconhecidamente um avanço institucional. Os estatutos das empresas estatais refletiram os preceitos da Lei e também se aperfeiçoaram ao longo do tempo. Hoje, identificamos manifestações de alteração em mecanismos importantes da Lei, algo que, na minha leitura, tem forte componente cultural. Existe uma visão muito predominante de que a empresa estatal, ainda que seja listada em bolsa, deve ser gerida pelo Governo Federal como um ministério ou instituição pública. Não é verdade. Falta essa cultura de governança corporativa entre parte dos próprios técnicos do Governo.
E o que tem faltado na sua visão?
Que o Governo se relacione com outros grupos dentro das companhias. A governança está exatamente nesse processo de construção de uma decisão nas companhias. Falta essa cultura corporativa na maneira como o Governo Federal se relaciona com as estatais, sobretudo naquelas que são listadas em bolsa. Tomemos o exemplo da Petrobras, que tem uma base acionária muito diversa, que inclui desde pessoas físicas e grandes investidores locais e internacionais que somam cerca de 49% do capital da companhia. O acionista controlador, com 51%, não pode ignorar o relacionamento com os outros sócios. Além disso, as alçadas decisórias precisam ter independência. Os administradores, de maneira geral, incluindo o conselho, dever ter independência para tomar suas decisões. O acionista controlador pode influenciar, claro,, mas ainda assim deve-se exercer essa influência dentro dos caminhos de governança. Você não pode permitir que empresas estatais sejam geridas com anúncios públicos intempestivos. Isso tem consequências não só do ponto de vista das regras administrativas que seguimos no Brasil, mas do ponto de vista da postura global. Se o Brasil quer competir em uma escala global e atrair capitais, precisa seguir regras de governança corporativa. Por exemplo, como as apregoadas pela OCDE.
Falando em padrões globais de governança corporativa, como acelerar o processo de divulgação de critérios ESG nas empresas brasileiras?
A gente tem um processo de incentivo à transparência e os avanços serão possíveis com uma regulação mais ousada. Há um processo de aprendizado ainda em construção. Mas para que isso avance e superemos a assimetria de informações, é necessário criar mais mecanismos para que as próprias companhias façam divulgações. Isso vai permitir que os investidores consumam essa informação de maneira organizada e consigam estimular a própria adesão dessas práticas. A regulação é o caminho pelo qual devemos avançar em sustentabilidade no Brasil.
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