Do lucro ao propósito, com rentabilidade: a mudança que está transformando a cultura corporativa

Em artigo, Victoria Hurth explora como as companhias estão revendo seu relacionamento com a sociedade

  • 28/11/2019
  • Autor Convidado
  • Artigo

Vivemos em um momento importante. No meio de tantas questões sobre mudanças climáticas, o crescimento da desigualdade e o colapso ecológico, pode aparecer que as companhias estão conduzindo seus negócios ‘como sempre’ - alheios aos acontecimentos ao seu redor e seu papel central neste eventos. Contudo, qualquer pessoa próxima do universo corporativo sabe que isso é de longe de ser verdade. As companhias estão mudando rapidamente, talvez ainda não naquilo que Schein, guru de cultura corporativa, chamaria de ‘artefatos’ - os aspectos tangíveis de uma companhia, mas em termos de hipóteses subjacentes e seus valores e estratégias declarados.

Naquilo que é o aspecto mais fundamental das organizações - as premissas implícitas sobre si mesmas e o mundo ao seu redor - a cultura corporativa está passando por nada menos que uma revolução. Uma revolução que está mudando como as companhias veem seu lugar neste mundo, o que significa o sucesso e seu relacionamento com aquilo que a sociedade deve ser. Mais especificamente, é uma revolução que basicamente representa uma mudança: do ponto de vista onde o lucro é o propósito de um negócio para a ideia que o propósito da companhia é de ter um impacto direto sobre o bem-estar e se responsabilizar pelo bem-estar de todos a longo prazo (para mim, essa é a definição de sustentabilidade).

Tenho certeza que, para a maioria dos leitores, isso é algo que já observaram ao redor do mundo, através das novas conversações, temas de conferências e declarações dos líderes de negócios icônicos. Essa ideia, que o papel das companhias é de maximizar o bem-estar ao invés de maximizar o lucro, tomou o centro das atenções em 2018. Para as pessoas que não perceberam a rápida propagação dessa ideia, veja a carta escrita por Larry Fink em 2018 para CEOs.

Aqui, vou destacar alguns aspectos da natureza desta mudança, que já começou, por que é tão importante e o que podemos fazer para apoiar essa transformação.

As raízes da transformação

Para entender a importância dessa mudança de foco e os desafios para uma cultura corporativa, ou seja, a migração do lucro para o bem-estar, devemos analisar o contexto em que está acontecendo mais detidamente. Ao longo do tempo, o lucro passou a ser a principal forma de medir o sucesso de uma companhia e era percebida como sua razão de existir. Friedman e seus ideais neoliberais, construídos em cima do pensamento econômico neoclássico, popularizou a ideia que o lucro era o único caminho moral que uma companhia poderia tomar. No sentido macro, a economia serve para transformar e alocar recursos escassos e maximizar o bem-estar - e o mundo corporativo seria o mecanismo-chave que a sociedade adotou para implementar este conceito. No pensamento neoliberal, começando com o Adam Smith, as companhias acreditam que os mercados onde o comprador e vendedor podem barganhar, sem qualquer interferência, representam o melhor caminho para otimizar a alocação de recursos necessária em busca do bem-estar. Ou seja, trabalhando com a premissa que o ser humano é racional, com interesses próprios e tem acesso às informações necessárias para orientar suas escolhas neste mercado, a conclusão é que aquilo que as pessoas compram é uma indicação do que seria melhor em termos de seu bem-estar. Neste sentido, o lucro é o melhor indicador do sucesso de uma companhia e seus esforços de realizar o bem-estar; qualquer interferência nas preferências pessoais da população iria distorcer o mercado, produzindo resultados inferiores.

Parece simples. Simples demais. Sabemos que há muita de errado com as premissas acima mencionadas, com destaque para o processo que as pessoas usam para tomar decisões (frequentemente de maneira não racional - veja os trabalhos de Kahneman) e como as companhias, apesar de suas dissimulações, influenciam as preferências pessoais proativamente usando meios que não podem ser facilmente regulados (veja cada propaganda ao nosso redor). É inevitável que, com cada mensagem que produzem, as companhias influenciam a sociedade - é apenas uma questão de até que ponto fazem isso propositalmente. Temos, então, dois fatores, um em cada lado da equação econômica (recursos e bem-estar). Por um lado, ninguém acompanhou o fato que as indústrias estão utilizando a base de recursos de maneira insustentável. No mundo neoliberal, isso seria o papel do governo, embora, nas últimas décadas, houve uma transferência maciça de poder dos governos para o setor corporativo, com muitas companhias hoje mais ricas que algumas nações - e parte desta riqueza é usada para não lidar com a tragédia que assola o patrimônio da humanidade. Ao mesmo tempo, como cidadãos, não temos informações suficientes para entender como esses recursos são explorados: queremos produtos baratos e acreditamos que o governo vai resolver com a situação.

O outro lado desta equação é o bem-estar; as companhias gastaram valores altíssimos durante décadas para promover o consumo como função do lucro, ao invés do bem-estar, sob a falsa premissa que isso não mudaria a sociedade, a cultura, a identidade, e além disso, ao comprar o que oferecem, é por que seria a melhor coisa para nosso bem-estar.

Como resultado, problemas como a saúde mental, obesidade, suicídio estão crescendo e a expectativa de vida está caindo em muitas economias de renda elevada; além disso, de acordo com diversos indicadores, a base de recursos naturais está beirando o colapso (taxas de biodiversidade, CO2 na atmosfera, quebra do ciclo do nitrogênio e do fósforo, escassez de água). Tivemos alguns grandes sucessos em questões como pobreza e igualdade, no entanto, elas provavelmente beneficiaram apenas uma ou duas gerações, se o preço a ser pago for o colapso generalizado do sistema que hoje enfrentamos.

Claramente, algo deu muito errado. Muitas pessoas estão chegando à conclusão lógica que o foco no lucro a curto prazo talvez não foi a melhor abordagem. O contrato social foi quebrado e a sociedade está revisando sua opinião do mundo corporativo. A sociedade agora exige uma abordagem corporativa focada diretamente no bem-estar e devem ser responsabilizadas por suas ações. Sim, elas devem fazer isso de maneira rentável - no sentido de cobrir seus custos de maneira sustentável e ter um impacto positivo além daquilo que, de outra maneira, não seria possível, não de enriquecer algumas poucas pessoas que recebem os benefícios de serem proprietárias da companhia sem assumir as responsabilidades. Isso não é socialismo ou comunismo, muito menos neoliberalismo. É o capitalismo - drasticamente reformado.

Do lucro ao bem-estar, de maneira rentável

Foi exatamente essa situação que o Larry Fink estava analisando quando disse: “Nós... vemos governos que não estão se preparando para o futuro... Com isso, a sociedade procura o setor privado e espera que as companhias resolvam os desafios mais amplos da sociedade. De fato, a expectativa pública em relação a sua companhia nunca foi tão grande. A sociedade exige que as companhias públicas e privadas servem um propósito social.”

Essa mudança a favor do bem-estar se chama ‘propósito’, e uma companhia com um propósito e uma que tome decisões baseadas em seu propósito. Imaginando que o propósito compartilhado da sociedade global é o “bem-estar generalizado a longo prazo” (o que eu defino como sustentabilidade), podemos dizer que o propósito de uma companhia pode nascer de uma questão: onde no mercado do bem-estar ela pode encontrar seu lugar, fazer melhor que as outras e assegurar que a companhia continue entregando bem-estar a longo prazo? Neste processo, é preciso assegurar que todas as partes interessadas que fazem parte deste sistema, e o público alvo da companhia, sejam adequadamente servidas a longo prazo. Felizmente, isso também atende ao desejo humano de encontrar um significado, que vem de ter um impacto positivo sobre outros.

O propósito das organizações e o papel da governança são áreas que estou estudando há vários anos com meus colegas em Cambridge, e agora consigo ver esse conceito começar a amadurecer. Agora, além de ter Empresas B e Companhias Sociais que formalizam seus propósitos, e companhias de grande porte como a Natura mudando seu foco, também temos muitas companhias, dos maiores (p.ex., a Unilever) até os menores startups, declarando que iniciaram um processo para estabelecer o bem-estar da sociedade como o motivo principal de sua existência.

Os órgãos de administração estabelecem e são responsáveis por esse propósito, e neste sentido o propósito e a governança são inseparáveis. Apesar do pressuposto que o dever de um órgão administrativo é com seus acionistas, muitas pessoas já entenderam que isso é apenas um pressuposto e simplesmente não é verdade na grande maioria dos países (ver os trabalhos jurídicos e acadêmicos de Lynn Stout e John Kay). Órgãos administrativos tem o dever de zelar para o sucesso da companhia a longo prazo - e isso, por sua vez, é profundamente ligado à sociedade e ao meio-ambiente.

Vivemos na época mais angustiante e fascinante de todos os tempos. A humanidade está na beira do precipício, temos o poder de decidir o bem-estar de gerações futuras, embora a comunidade científica está dizendo que o futuro não é muito promissor. Ao analisar como chegamos até aqui, o paradoxo do ‘lucro como propósito’ talvez seja um dos maiores culpados, tirando o foco das companhias de questões como a sustentabilidade dos recursos naturais e o bem-estar. Se as companhias realmente passam a ser guiadas por um propósito, e se encontrarmos uma maneira de responsabilizar o mundo corporativo por isso, talvez conseguimos encontrar uma solução de última hora - a chave que pode reverter esses problemas enraizados. Por isso, acredito que a questão de ‘propósito’ deve ser levado a sério e devemos fazer de tudo para apoiar e desafiar as companhias que estão tentando realizar essa tão profunda mudança cultural.

Este artigo é parte da 6ª edição da revista Análises & Tendências, com foco em cultura ética.

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Sobre a autora

Pesquisadora, executiva, facilitadora e consultora, ela é graduada pela Aston University, mestre pela University of KwaZulu-Natal e doutora pela University of Exeter. Com passagens por companhias como 3M e Accenture, atualmente é associada do Cambridge Institute for Sustainability Leadership e trabalha pela inserção da academia no ambiente de negócios.

Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do IBGC.