“Representatividade amplia horizonte da governança corporativa”

Lisiane Lemos, cocriadora do Conselheira 101, quer expandir rede de mulheres negras e vê-las nos conselhos de administração

  • 19/02/2021
  • Ana Paula Cardoso
  • Bate-papo

“Quando eu vejo uma conselheira negra eu me permito começar a sonhar com esta posição”, disse Lisiane Lamos, durante bate-papo com o Blog do IBGC. Para ela, a representatividade é algo marcante em sua trajetória. Aluna bolsista de um colégio particular em Pelotas (RS) na infância, acostumou-se a ser a única de sua etnia na escola.

Como é recorrente na trajetória de mulheres, negras e originárias de camadas socioeconômicas modestas, Lisiane enfrentou todos os percalços consciente de que seria preciso se superar. Estudou muito, buscou trabalho fora do Brasil e quando um dia finalmente foi fazer um processo seletivo para um sonhado cargo na Microsoft, teve uma surpresa: o executivo do mais alto cargo a entrevistá-la era negro.

 “Naquele momento formou-se uma espécie de aliança: fui contratada e nós dois decidimos trabalhar em prol de transformar aquela empresa em um ambiente mais diversos”, contou a hoje executiva de expansão de negócios da Google e cocriadora do Conselheira 101, iniciativa voltada a expandir o horizonte da governança corporativa, abrindo caminhos a mulheres negras. 

Para Lisiane a inclusão de mulheres negras em boards expande o horizonte da governança corporativa. Mas é preciso construir uma rede representativa. “A gente entende que o network é grande parte desse movimento de se chegar a conselheiro de administração”. Veja a entrevista na íntegra a seguir.

IBGC: Vamos falar do Conselheira 101, uma iniciativa pioneira, 100% digital para inclusão de mulheres negras em conselhos de administração, da qual você é cocriadora. 
Lisiane Lemos: O Conselheira 101 nasceu de um post que fiz no Linkedin no intuito de conhecer mais sobre governança corporativa e conhecer negros atuantes no Brasil neste segmento.  A repercussão foi grande: em 48 horas eu tinha uma lista de 120 homens e mulheres negros de nível executivo. A partir daí a frase que melhor ilustra essa decisão é uma da Angela Davis (referência da causa feminista e racial dos EUA), que virou meu mantra: não basta ficar indignado com as coisas que não aceito e sim fazer algo para que elas mudem. 

A representatividade é um caminho para expandir a diversidade?
Lembro quando fui fazer a última entrevista para entrar na Microsoft há alguns anos.  Era com o executivo ocupando o mais alto cargo na hierarquia. E ele era negro. Foi uma surpresa. Ele percebeu e eu fui sincera: disse que não esperava ver um negro ocupando aquele cargo. A partir dali a gente fez uma espécie de aliança: queríamos mudar esse cenário, porque ele constatou que não havia negros nem mesmo no cargo de trainee que eu ocuparia. Tem uma pesquisa de 2016 do instituto Ethos dizendo que; das vagas de liderança de empresas no Brasil, somente 4% são ocupadas por negros. O cenário não é favorável. E aí, ou a gente segue o caminho que definiram para nós ou nós criamos uma nova história. E respondendo sua pergunta: sim, porque a gente só pode sonhar com aquilo que a gente vê. Quando uma mulher negra vê uma entrevista da Shaila Silva no blog do IBGC falando de CoAud, por exemplo, ela pode se enxergar ali. E daí para ela querer trilhar o caminho de se tornar conselheira é mais fácil. 

E do sonho para a prática? Talvez para as boas práticas de governança?
O caminho é complexo, tortuoso e árduo. A gente tem o caminho do próprio profissional. Primeiro é preciso que ele entregue o “feijão com arroz”, ele precisa se desenvolver como profissional. Depois tem o caminho do network, que é o propósito do Conselheira 101: dar esse recorte racial à questão de gênero nos conselhos, criando um círculo virtuoso no qual a gente possa saber quem indicar – no sentido de ter o perfil que a empresa está buscando - e a quem indicar. E fazer com que as empresas saibam onde encontrar futuras conselheiras negras. Representatividade amplia o horizonte da governança corporativa. Mas lembrando: com a agenda ASG (ambiental, social e governança) as empresas estão com uma tendência de contratarem trainees dentro dos critérios de diversidade. Mas aí vai levar 10 anos até que esses profissionais cheguem a cargos que os qualifiquem a avançar até os conselhos. Eu estou falando de ocupar já as cadeiras dos conselhos com profissionais negras que já estão no mercado. 

Como, na prática, se constrói uma empresa diversa? 
Tem um aspecto que me preocupa muito: a velocidade com a qual as empresas querem diversificar seus quadros. Tanto executivos quanto de conselhos.  Não estou dizendo que devamos retroceder ou perder essa agilidade que começa. Mas se hoje a gente tivesse um botão mágico para transformar as empresas no retrato do que a sociedade é em termos de diversidade, seria um caos. Existe um trabalho que precisa ser acompanhado. Eu vi um número sem fim de líderes de diversidade chegando a um burn out. É preciso uma preparação cultural na empresa. Imagina que você tem um ambiente com 10 homens trabalhando há anos todos juntos. Um é padrinho do filho do outro, fazem churrasco, essas coisas. E aí, de um dia para o outro, coloca-se mulher, negro, transgênero ou cadeirante para fazer parte deste time. Provavelmente você vai dividir a equipe criar dois nichos. Porque eles nunca tiveram juntos, eles não sabem se comunicar. 

E como se quebra essa resistência?
Então a gente precisa fazer uma preparação cultural para fazer inclusão de verdade. Para quebrar a resistência, todos terão que entender que o que trouxe a empresa até aqui não é o que vai levá-la até onde se quer chegar.  Vai ser preciso trazer profissionais diversos? Sim. E ao mesmo tempo  fazer um trabalho de conscientização interna, focus group, dar treinamentos, trazer pessoas para construir essa história e convidar os que já estão na empresa a construírem juntos. E a nossa escolha de começar um trabalho com foco em mulheres negras é porque as mulheres negras são preteridas em tudo em nossa sociedade. Da vida profissional ao amor. No Conselheira 101 elas são privilegiadas. E por que é importante falar isso? Porque o mix de experiências delas vai desenvolver os desenvolver os critérios para inseri-las nos conselhos e vai conectá-las com as pessoas com as quais vão construir a diversidade em conselhos. 

Confira as últimas notícias do Blog IBGC